[Ele dormia em declaração.
Tinha as mãos levemente levadas ao queixo.
O dedo indicador apontava para os olhos cerrados em sono profundo.
A boca entreaberta como que fotografada no intervalo entre um sim e um não.
Ele dormiu em prece.
No céu da boca guardou meus gostos.
Na pele armazenou meu cheiro.
E tatuou com dor minhas palavras no próprio coração.
Deitado de lado, sereno e completo, adormeceu em ato de amor.
Sua expressão era de gratidão, como se minha presença fosse territorial.
O sorriso discreto era a confirmação da saudade sanada pela fragrância anis.
"Ai, meu bem, como dormir é só!
Quanta solidão vazia e inconsciente nesse teu descansar."
O peito respirava paz.
Como se ele soubesse, mesmo diante daquela escuridão, que eu tinha ido em busca do que me pertencia.
Tive vontade de cobri-lo com meu corpo e com minhas lágrimas. Mas era sábado a noite. Eu não podia chorar. E ele não podia falar.
Na falta do que dizer, adormeceu.
Ele se deitou mansinho, para não acordar os próprios medos.
Driblou a alma que pedia socorro, fechando os olhos e entregando ao mundo o meu amor.
Senti-me desamparada.
Calcei os sapatos e caminhei até a porta.
Traguei o último rastro de amor que restava no ar.
Intoxiquei meu orgulho.
Soube naquele momento de despedida vã que eu passaria a ser somente mais uma lembrança embaçada, uma declaração antiga, o gosto sutil de um sonho bom.
Queria fugir, mas o labirinto da vida me enforcou.
Não havia mais pés para correr, eles foram exterminados junto com o bom senso.
Não havia mais como abrandar o coração, ele sangrava junto com a paciência.
O sexo foi corrompido junto com o juízo.
Não havia mais saída.
Era preciso refugiar-se dentro de si, trancar-se através do sono profundo.
Dormir por alguns séculos.
O suficiente para quem tem a angústia em cada esquina, a fome no estômago, a mudez na palavra. O bastante para o amor perdoar o egoísmo]
terça-feira, 24 de julho de 2007
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2 comentários:
Nossa Cá!
"A boca entreaberta como que fotografada no intervalo entre um sim e um não."
"Traguei o último rastro de amor que restava no ar."
Muito, muito sensível. E eu ainda tive chance de ouvir você lendo esse post assim que o escreveu. E eu fumando na janela. Foi poético.
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